segunda-feira, março 15th, 2021
Como empresa de tradução, estamos sempre procurando materiais sobre o assunto e tudo que ele engloba. Assim, recentemente limos este artigo interessantíssimo, escrito por Hallie Davison, produtora do documentário da Netflix Taco Chronicles, no qual ela fala sobre o esforço contido em legendar o programa. Ela explica como pequenas palavras que pareciam irrelevantes podiam ter um impacto grande na compreensão e na experiência de quem estava assistindo e como isso exigiu um trabalho a mais no processo. Isso nos trouxe reflexões interessantes, que nos lembrou um caso anterior debatido na equipe, que falaremos aqui na forma de dois casos:
Hallie explica que ao falar sobre os ingredientes contidos nos tacos, “limão” foi traduzido como “lemon” (limão siciliano) ao invés de “lime”. Isso pode parecer pouco importante, mas se considerarmos que o limão siciliano sequer existe no México, com certeza poderia chamar a atenção de quem está familiarizado com o conteúdo, ou até mesmo com quem é estrangeiro e escolheu assistir o programa legendado, pois se destaca como um erro grande, do ponto de vista cultural. Esse pequeno deslize poderia nos tirar, por um momento, da experiência, um sentimento, um ato de tradição…isso ocorre porque na língua, estamos mexendo também com sentimentos: segundo ela mesma, assim como a língua, a comida é algo utilizado para unir, mas também para dividir, colonizar e invisibilizar… E a atenção ao detalhe, e a compreensão cultural aprofundada, são coisas que não deveriam ser deixadas de lado na hora de passar um texto a outra língua.
É claro que estrangeirismos exagerados e jargões desnecessários são contraproducentes, conforme já mencionamos, mas o cuidado com as escolhas de vocabulário e a ponderação na hora de escolher um termo ao invés de outro, não só mostra respeito com o texto original, como também torna a experiência de consumir um conteúdo estrangeiro mais imersiva e enriquecedora.
Por outro lado, mas ainda sobre sentimentos, ouvimos um relato de uma argentina, que mora no Brasil, e diz que, para ela, é um pouco difícil consumir as tiras e historinhas em quadrinhos (no caso, da personagem Mafalda) em outro idioma, que não o seu original.
Apesar de serem totalmente atemporais e universais, os cenários das personagens carregam uma pequena característica da cultura argentina, que parece um pouco “estranha” quando as tirinhas estão em outro idioma. Obviamente, a leitura é sempre válida e todos deveriam consumir, amar e se jogar nas interessantes críticas e comentários desta personagem tão amada, independente da língua … porém, neste caso particular, Mafalda é vista com uma pequena dose de saudade e até lembranças do lar: As palavras a lembravam dos vizinhos falando na rua, as paisagens das escolas que frequentou e as piadas lembravam as risadas dadas aos 6 anos, lendo a mesma historinha com os avós.
Podemos concluir, então, que o saudosismo e os sentimentos também influenciam no que a gente entende como qualidade de uma obra! Será que, talvez, para outro nativo sem essas memórias afetivas, a tradução / legenda sem esses aspectos culturais ou esses desvios vocabulares, é algo que não incomoda ou gera estranhamento? Será que, para um brasileiro morando em outro país, ver algum material nacional em uma língua estrangeira não provoca um susto? Ou ver algum termo muito brasileiro traduzido de forma algo literal, mas não tão exata assim (como a famosa polêmica do termo pão de queijo para cheese bread), não vai tirar um pouco da experiência de consumir o conteúdo? Vamos pensar, por exemplo, na grande quantidade de novelas brasileiras que são exportadas para outros países, como Uruguai, Sérvia e Indonésia, dente outros. Todo esse conteúdo é dublado para a língua do local e, com certeza, seria no mínimo surpreendente para um brasileiro observar isso.
A língua, como sempre dizemos, não é apenas um conjunto de símbolos e noções! É um recurso incrível, que carrega sentimentos, cultura, ensinamentos. E é por isso que, como leitores, antes de questionar a qualidade de uma tradução, devemos nos perguntar: qual é minha relação com o texto original? Como eu compreendo o que estou lendo? E, como tradutores, precisamos pensar: como posso manter as características culturais do meu original? Qual a melhor forma de ter acesso a todo o vocabulário necessário sem que haja perda no meio do caminho? Essa “pré-avaliação” é algo fundamental no trabalho do tradutor!
Traduzir e ler são processos que envolvem muito mais do que pensamos, portanto, saber escolher com quem trabalhamos e quem tomará conta do nosso texto, não é algo menor!
Vernaculum - Todos Direitos Reservados 2019
Deixe um comentário