segunda-feira, agosto 28th, 2017
Todos os dias, nos esforçamos para destacar como a tradução é um trabalho desafiador. Cada texto tem suas particularidades, suas terminologias específicas e as características que fazem dele especial. Mesmo com esses detalhes, geralmente a maioria deles segue uma lógica definida, e é só se adaptar a ela. Porém, existe um gênero literário que desafia tudo que sabemos (ou acreditávamos saber) sobre tradução: a poesia.
É normal para nós saber um pouco do contexto do nosso texto e pesquisar termos ou informações da área em questão … mas, o que acontece quando o contexto são todas as vivências, sentimentos e aflições de outra pessoa? O trabalho se torna muito mais desafiador. E, após descobrir sobre o autor, como passar sua mensagem sem acabar com os símbolos e as características sonoras do texto? Ou, até mesmo, como fazer com que as sílabas poéticas em uma língua se igualem às da outra (afinal, muitos textos são classificados apenas por essa característica e há até mesmo jogos numéricos dentro delas)?
A chave é ter paciência. Entender que, a tradução de poesia é um trabalho artístico por si só e o tradutor dará sua cara à obra. Um poema pode aproveitar as características de uma língua que não existem em outra. Compreender que a tradução poética nunca é perfeita mas que é sempre permeada de sentimentos e arte é o principal. E também, escolher cuidadosamente a característica principal que vamos passar é nosso recurso principal.
Por exemplo, o poema “What the trush said”, de John Keats, pode parecer simplesmente um texto sobre as estações e a mudança do tempo mas, pesquisando mais profundamente, descobrimos que o autor padeceu de tuberculose e o poema está cheio de símbolos que representam a saúde e a doença, o calor e o frio. Algo que ajuda na hora de traduzir é o fato do poema ser de versos brancos, ou seja, não possui rimas marcadas e, portanto, podemos nos focar apenas em reproduzir os simbolismos e tentar manter a métrica. Interessantemente, este autor possui uma quantidade muito pequena de obras traduzidas!
Algo muito diferente, ocorre com o Soneto 43 de Elizabeth Barrett Browning. Este, sim, é marcado por duplas de rimas certas em lugares específicos e, há quem diga, que isso representa o amor que está sendo tão exaltado no poema. A complexidade da tradução é tanta que há quatro versões em língua portuguesa! Cada uma delas com foco diferente: uma procurando manter as rimas, outras, a literalidade. Como o amor adquire diferentes formas, neste caso, se apegar às rimas é mais fácil porque o sentimento de amor estará sempre lá (apesar de que, na minha opinião, a melhor tradução é do Sérgio Duarte).
Um último caso de como é complexo e interessante lidar com poesia, é o famosíssimo poema de Edgar Allan Poe, O corvo. Sua tradução mais famosa, feita por Machado de Assis, é amplamente criticada e elogiada mas o principal inimigo aqui foi a própria língua portuguesa: o poema original, em inglês, cria um clima obscuro e soturno com a grande quantidade de palavras contendo o som do “o” e do “u”. A palavra “nervermore” é uma palavra agressiva, que no ouvido entra de forma pesada e assustadora. Já seu equivalente em português, “nunca mais” com tantas letras abertas, e o som do “a” e do “i” é leve, até mesmo amigável, cortando totalmente a agressividade e dureza do original!
Considerando tudo isso, da próxima vez que você ler um poema traduzido, encare com outros olhos e se questione sobre o motivo que levou o tradutor a escrevê-lo assim. Será uma experiência e tanto!
Vernaculum - Todos Direitos Reservados 2019
Deixe um comentário