Cultura, onipresente na tradução
sexta-feira, julho 23rd, 2021
Ao procurar a palavra “cultura” no dicionário Michaelis, recebemos como resultado nove definições e seis expressões idiomáticas. Já ao procurar “culture” no Longman, recebemos 6 definições e uma longa página com colocações e explicações de diferentes usos. No dicionário da RAE, recebemos mais 4 resultados. E o que isso quer dizer? Que cultura não é uma coisa só. Uma coisa simples que podemos colocar numa caixinha de classificação, e pronto.
A cultura permeia tudo que dizemos, fazemos e a forma como falamos, e não poderia ser diferente com a tradução. Acredite ou não, nos textos mais simples e nos mais técnicos a cultura está presente. Veja só alguns exemplos:
- Em 2013, Amanda Benites e Liliam Pietro, da UEM, escreveram um artigo analisando e apontando a presença de condicionantes culturais na tradução de um manual de smartphhone. Um dos exemplos dados é o seguinte: “To answer a call while using the iPhone headset(…)” para “Para atender uma ligação quando estiver o usando o headset do iPhone(…)” (Seção Make a call/ Faça uma ligação). O dicionário online Oxford Advenced American Dictionary (2011, [f.1]), esclarece que headset é “A pair of headphones, especially one with a microphone attached to it, often used to talk on the phone”, ou seja, um fone de ouvido equipado com um microfone para atender ligações. Portanto, no caso anterior havia uma palavra estrangeira de uso normal em português, até dicionarizada, enquanto a palavra headset tem um “equivalente” em português “fone de ouvido” (já que mesmo tendo um microfone, isso não chega a alterar o nome), o que significa contar com um conhecimento prévio além do alcance do leitor comum” (Benites e Pietro, 2013). Esta escolha é cultural, já que o fato de um termo em inglês ser considerado um equivalente a uma palavra na língua portuguesa mostra que o país que receberá o produto (no caso, o Brasil) possui bastante influência de países estrangeiros e utiliza estrangeirismos com certa frequência.
- Outro exemplo incrível da influência da cultura na língua pode ser observado na tradução ao macedônio do clássico Moby Dick, de Herman Melville. Como explica este artigo, o tradutor Ognen Čemerski precisou realizar um trabalho de pesquisa e posterior ensino para seus leitores, já que o livro é focado em terminologia marítima e relacionada à caça de baleias e a língua macedônia não contava com vocábulos para expressar essas noções, por um motivo muito simples: o país é rodeado de terra, sem acesso ao mar!
- Finalmente, um exemplo do português foi mencionado pela tradutora Paula Abramo durante uma palestra no 11º Congresso da Abrates: o termo moleque, que hoje é tão utilizado para se referir às crianças levadas, revela características da cultura e da formação do nosso país. Segundo o Dicionário Etimológico, o termo vem do “quimbundo mu’leke, que significa literalmente “filho pequeno” ou “garoto”. Era um termo trazido e utilizado pelos escravos africanos angolanos, e segundo o dicionário Morais Silva de 1831 significava “s. m. pretinho, negro pequeno” sendo, à época, uma grande ofensa chamar uma criança branca de moleque.
E o que tudo isso representa afinal? Sempre dizemos que a língua e a comunicação têm poder, mas a tradução e a linguagem são mais do que isso. As palavras e os idiomas não são apenas conjuntos de letras que, de acordo a como são ordenados, passam informações. Elas são uma ferramenta que passa contextos e ideologias. As palavras, expressões e escolhas linguísticas são viesadas, podendo tanto concordar quanto condenar ideias e visões de mundo, sejam elas políticas, econômicas e até geográficas, como mostrou o exemplo acima.
Compreender e refletir valores e crenças no discurso é algo do que não poderemos fugir, como foi visto. Mas estar disposto a procurar e escolher os valores corretos e ter a vontade de trabalhar com a língua de forma consciente, além de pesquisar, entender e conhecer todo o contexto por trás do que estamos traduzindo é o que diferencia uma tradução literal de uma tradução bem adaptada, com atenção ao estilo, aos detalhes e às características do idioma.
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